terça-feira, 1 de abril de 2014

A Casa do Rio Vermelho

Aproveitando que o nosso clubinho Léria se debruçava sobre os Capitães da Areia, de Jorge Amado, resolvi ler este A Casa do Rio Vermelho, de Zélia Gattai.

O livro relata o período em que Zélia e Jorge moraram juntos nessa casa da Rua Alagoinhas, em Salvador de Bahia, entre a década de 60 e a de 90 do século passado. No fim deste post, podem ler um excerto da passagem de Jorge Amado e Zélia Gattai pela Galiza. 

Para quem o queira ler, o livro está disponível na biblioteca Ângelo Casal.


Filha de migrantes italianos, Zélia Gattai nasceu em São Paulo em 1916. Cresceu num ambiente de luta operária, entre migrantes portugueses, italianos e espanhóis - muitos deles galegos, previsivelmente. O livro Anarquistas graças a Deus dá boa conta deste período da vida da autora.

Zélia conhece Jorge Amado em 1945, no meio de uma campanha pela amnistia de presos políticos. O longo relacionamento que iniciou com o escritor bahiano irá até a morte deste, em 2001. O Rio de Janeiro, a Checoslováquia, Paris e, nomeadamente, Salvador, serão alguns dos cenários da vida em comum do casal.

A Casa do Rio Vermelho começa com a viagem do casal do Rio até Salvador, num Citroen ID19, que Jorge Amado batizaria como Cara de Sapo. João Jorge filho fazia então13 anos, e os pais resolvem mudar-se para a Bahia, assustados com o ambiente de violência que se vivia no Rio.

A primeira parte do livro narra as peripécias do casal à procura de uma casa, que acaba por ser aquela que dá nome ao livro. Para além do interesse na vida da Zélia e Jorge Amado, o livro dá-nos bons exemplos dos ritmos da vida em família no Brasil - uma família no mais amplo dos sentidos, com amigos sempre em volta, como o pintor Bahiano Carybé.



Pela Casa do Rio Vermelho passarão, entre muitos outros: Simone de Beauvoir, Jean-Paul Sartre, Harry Belafonte (cantor de calypso), Sofia Loren, Pablo Neruda, Pierre Verger, Carlos Bastos (pintor), Amália Rodrigues, Dorival Caymmi, Vinícius de Moraes, Maria Bethânia, Caetano Veloso, Mário Soares, e os escritores portugueses Ferreira de Castro e Fernando Namora. Um dos hóspedes habituais era o cantor Georges Moustaki, que compôs duas canções à Bahia, sendo que numa delas o próprio Jorge Amado é citado.



O livro dá também boa conta das viagens de Jorge Amado e Zélia Gattai. Numa das primeiras que se relatam, a Cuba, o casal vai ter com o poeta Nicolás Guillén.

Nessa visita, Jorge Amado, comunista pouco ortodoxo, pediu para visitar um Terreiro de Candomblé em Havana. Ora, os camaradas cubanos respondem que já não há candomblé em Cuba:

Jorge quis assistir a um candomblé e eles disseram que não havia candomblés em Cuba. Num discurso de despedida, para uma grande plateia de intelectuais e de leitores seus, Jorge disse o quanto lamentava não ter encontrado um terreiro de candomblé em Cuba, o quanto repudiava o sectarismo e que não concordava com qualquer restrição religiosa, fosse ela qual fosse (Página 59)

Outras vertentes interessantes do livro são as relações com escritores portugueses; as alusões à ditadura que se iniciou em 1964; os filmes baseados em livros de Jorge Amado;  episódios como o do enterro do famoso cangaceiro Corisco; ou o processo de escrita de algumas obras de Jorge Amado, como os apontamentos autobiográficos de Navegação da Cabotagem.

Interessa também a própria autodescoberta de Zélia Gattai enquanto escritora, quando já tinha 63 anos. A sua escrita estaria marcada pela naturalidade da linguagem e a falta de pretensionismo literário, virtudes raras de encontrar.

Para finalizar, deixo aqui o excerto que diz respeito a uma passagem do casal pela Galiza, provenientes de Portugal e a caminho da Escandinávia. Achei engraçado que esta epígrafe leva-se por título Rumo à Dinamarca, como se fôssemos um barco prestes a partir para algum outro lugar.

 Fonte da imagem: colegioativoliterativo.blogspot.com
RUMO À DINAMARCA

Zélia Gattai, em A Casa do Rio Vermelho

Num Mercedes preto, com motorista e tudo, carro alugado em Lisboa, saímos numa viagem pelo norte de Portugal, atravessamos serras e planícies, passamos a fronteira com a Espanha. Nos divertimos constatando a diferença de caráter entre os vizinhos, tão próximos e tão distantes na maneira de ser.

Deixávamos Portugal e antes de atravessarmos a fronteira lemos numa parede: Um dia o sol brilhará para todos. Logo abaixo, a intromissão de um gaiato: E nos dias de chuva?

Mal pisamos a Espanha, lemos na fachada de uma casa, em letras garrafais: Te odio, te odio y te odio!

Em Vigo almoçamos no restaurante El Mosquito os mais deliciosos frutos do mar. Jorge fez questão de passar com Arlete por uma papelaria, nossa conhecida, atração e divertimento de brasileiros que por ela passam, interessados no nome do proprietário escrito na fachada da casa comercial: Papeteria Juan Buceta.

Nosso destino era Santiago de Compostela, passaríamos, a caminho, por Pontevedra, onde tínhamos amigos. Lá encontraríamos Manolo ou José Alberto Moreira, donos do melhor antiquário da Bahia. Os Moreira tinham em Pontevedra uma sucursal ou matriz, não sei, da casa de antigüidades. Nessa cidade também viviam alguns baianos casados com galegos. Por onde passávamos íamos encontrando conhecidos.

Santiago de Compostela é a cidade de meus encantos. Não víamos a hora de chegar à catedral, não queríamos perder a impressionante cerimônia do bota fumero, quando um gigantesco turíbulo suspenso ao alto por grossas cordas é balançado de um lado a outro da igreja, a velocidade aumentando cada vez mais, a fumaça do incenso se espalhando, invadindo tudo.

Havia fila para reverenciar Santiago de Compostela, cuja imagem estava instalada no centro do altar-mor.

Paramos para ver, dentro do templo, nas suas laterais, enormes pinturas, onde Santiago, montado a cavalo, de espada em punho, decepa cabeças, mata os mouros que o rodeiam. Por isso o chamavam Santiago Mata Moros, explicava um guia de turismo a um grupo queacompanhava.

Eu estava doida para me aproximar da imagem, no altar, ao alto,coisa fácil pois era só subir uma escadinha atrás, que dava acesso àscostas do santo. Esperei que um grupo de turistas acabasse de subir, fui atrás. Naquele ambiente sombrio, a proximidade com a imagem me impressionou. Queria dar-lhe um beijinho e para completar o carinho devia também abraçá-lo. No momento em que o abraçava e beijava-lheas costas, ouvi uma gargalhada, aliás, duas gargalhadas. Sem me separar de Santiago, olhei para o lado, onde Arlete e Paloma morriam de rir. Eu não estava ali por caçoada, nem por devoção, apenas tivera esse ímpeto e fora adiante. Não sei se foi impressão minha ou não, senti Santiago tremer na base, não devia estar muito preso. Nesses momentos a gente pensa nos maiores absurdos, e eu pensei: e se aimagem desabar sobre o altar e eu junto, grudada em suas costas?

Atacou-me uma vontade louca de rir, sobretudo ao ver que Jorgec hegara junto à escadinha e ria com as duas. Não conseguia me soltar do santo, atrás de mim a fila aumentava e eu ali, fingindo que choravade emoção, recurso instintivo, evitaria ser linchada caso descobrissem afalta de respeito, rir daquele jeito nas costas de Santiago deCompostela. Situação tragicômica, inesquecível, nos rende boas risadas todas as vezes que a recordamos. Nosso destino era a França onde pararíamos uns poucos dias em Paris, antes de prosseguirmos a viagem para a Escandinávia.

(Páginas 199-200)
Joseph escreveu este post sobre A Casa do Rio Vermelho.

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