terça-feira, 4 de março de 2014

Eusébio Macário e A Corja, de Camilo Castelo Branco


Cada vez mais sou da ideia de que Camilo Castelo Branco é o escritor que mais nos aproxima daquilo que poderia ter sido a narrativa em galego do século XIX, no caso de que tivéssemos uma literatura inteiramente assentada naquela altura. O mundo ficcional do Camilo é quase sempre o norte de Portugal, nomeadamente a região do Minho e parte ocidental de Trás-os-Montes.

Fonte da imagem: http://casadecamilo.wordpress.com/tag/eusebio-macario/

No prefácio da edição conjunta de Eusébio Macário e a Corja (Edições Caixotim), J.Cândido Martins atribui a estas duas obras o caráter de pastiche parodístico dos doutrinas do realismo e naturalismo literários.

A chamada Questão Coimbrã (1865-66) e as Conferências Democráticas do Casino Lisbonense (1871) são o enquadramento de partida das nova estética realista em Portugal. Os romances O Crime do Padre Amaro (1875) e O Primo Basílio (1878), de Eça de Queirós, inscreve-se na tentativa de "pintar" a sociedade portuguesa, com base antes na "verificação" do que na "imaginação".

Camilo Castelo-Branco será crítico com o espírito iconoclasta e a alegada novidade da estética realista-naturalista, postulando que os representantes de tal escola "se esqueciam de uma longa tradição realista, presente desde os primórdios da literatura europeia", e "sustentando que a questão do realismo era tão velha como a própria literatura" (Cito J.Cândido Martins). Camilo também criticará o excesso de descrições, o "daltonismo psicológico" ou a pretensão experimental da nova escola. Este distanciamento doutrinário do Camilo não obstará, porém, a que ele próprio seja influenciado pelo realismo e naturalismo, como se pode observar em A Brasileira de Prazins.

Numa excelente síntese, Cândido Martins atribui os seguintes princípios estético-doutrinários à escola realista: atualidade, quotidiano,impassibilidade, verosimilhança, coloquialidade, descrição e explicação.

O primeiro elemento parodístico do Eusébio Macário é o subtítulo (História natural e social de uma família no tempo dos Cabrais), que remete para o nome dado ao conjunto romanesco dos Rougon-Macquart de Zola: Une famille sous le Second Empire.

O Cabralismo desenvolveu-se nomeadamente entre 1842 e 1846, na altura do reinado da rainha D.Maria I. Com base na constituição de 1826, este sistema tentou defender-se tanto dos absolutistas (miguelistas), quando dos liberais exaltados. Costa Cabral, que dá nome ao movimento, foi um valido da rainha. O seu governo foi caraterizado pelas reformas administrativas e as grandes obras públicas. A revolução de Maria da Fonte, em 1846, pôs fim a este período.

O acontecimento que põe em andamento a trama do Eusébio Macário é o regresso do Brasil Bento José Pereira Montalegre às Terras de Basto, de onde é originário, e onde mora a sua irmã Felícia. Felícia namora com um abade, Justino, a quem conheceu nas proximidades de Montalegre, na terra de Barroso. O brasileiro Bento Pereira casar-se-á com Custódia Macário, filha do boticário Eusébio Macário. O filho, José Macário, acabará por casar com a Felícia, que abandona o abade.

A "ubérrima" Terra de Bastos, cenário de parte do romance de Camilo.


O ascenso social da família Macário leva-os da terra de Basto a Lisboa e ao Porto, onde se estabelecem. O abade, que continua apaixonado pela Felícia, irá também ao Porto para tentar recuperá-la. A Corja desenvolve a vida da família no Porto e Lisboa, num ambiente frívolo e decadente, onde adultérios e traições se sucedem.

Cativou-me nestes dous livros o teor paródico, magistralmente plasmando no uso da língua, e o retrato que Camilo faz dos novos ricos vindos do Brasil e da vida decadente e devassa que envolve a família dos Macário no Porto.

Já no início do livro, a descrição pormenorizada de um relógio de aldeia, lembra de maneira irónica as descrições pormenorizadas tão frequentes nos romances naturalistas:

Havia na botica um relógio de parede, nacional, datado de 1781, feito de grandes toros de carvalho e muita ferraria. Os pesos, quando subiam, rangiam o estridor de um picar de amarras das velhas naus. Dava-se-lhe corda como quem tira um balde da cisterna. Por debaixo da triplicada cornija do mostrador havia uma medalha com uma dama cor de laranja, vestida de vermelhão, decotada, com uma romeira e uma pescoceira, crassa e grossa de vaca barrosã, penteada à Pompadour, com uma réstia de pedras brancas a enastrar-lhe as tranças. Cada olho era maior que a boca, de um vermelho de ginja. Ela tinha a mão esquerda escorrida no regaço, com os dedos engelhados e aduncos como um pé de perua morta; o braço direito estava no ar, hirto, com um ramalho de flores que parecia uma vassoura de hidrângeas. Este relógio badalara três horas, que soaram ríspidas como as pancadas vibrantes, cavas, das caldeiras da Hécate de Shakespeare.

Também passa pela peneira da paródia é a prosa de inspiração bucólica, como a de Rodrigues Lobo:

O arrebol da tarde franjava de purpura as agulhas da montanha; espinhaços dos últimos horizontes de serra recortavam-se como sentinelas nocturnas dum baluarte de cíclopes ; espigões enormes pareciam braços hirtos dos legendários titãs a escalarem o olimpo ; filas cerradas de pinheiros lá em cima nas cumeadas lembravam esquadrões de gigantes, pasmados, a olharem para nós,burlescos pigmeus, que andamos cá em baixo a esfervilhar como bichinhos revoltos nas enormes podridões verdoengas do planeta. Ele olhava para tudo aquilo com cara de asno, não percebia mitos nem ideais, e pensava na cea. 



Raparigas desciam das encostas hervecidas com rebanhos a dessedentarem-se rem-se nos ribeiros; cabritos alcandoravam-se em rochedos com balidos cerebros e ginásticas elegantes; bois escornavam-se com pancadas sonoras d'uma dureza cava. E o Justino, o estudante saltava dos vallados sombrios à laia de sátiro, como tigre faminto do palmar, e enviava-se fremente ás pastoras, dando-lhes abraços bestiais, hercúleos, e ferradelas cupidíneas, dissolventes, nos cachaços sensuais penujentos. Elas casquinavam risadas inocentes, fugiam, deixavam-se agarrar, botavam-se a ele, às três e às quatro, atiravam-no ao chão, cabiam de embrulho, e espojavam-se todos, qual por baixo qual por cima, escouceando-se, com uma candura bucólica digna de Rodrigues Lobo e de muito chicote.

Do ponto de vista da língua, interessam os numerosos excertos em que se parodia o uso de francesismos, muito frequentes na literatura de teor naturalista.

Também o sotaque do brasileiro Bento José Pereira é reproduzido marcando os traços rítmicos, sintácticos e lexicais do português do Brasil:

(..) porque a religião mi párece précisa para o povo (página 98)

(..) E o abade é exempelar (página 99)

(..) É a primêra moça galante que mi ápárece no Minho (102)

O livro dava para muito mais, mas não quero ser chato. Ah! Hoje mesmo devolvo este livro na Biblioteca Ângelo Casal, de onde o podem levar emprestado.

Acresci ao texto algumas fotografias que tirei há um par de meses nas Terras de Basto, onde se desenvolve parte do romance.


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